quinta-feira, 5 de julho de 2012

Contardo Caligaris

A cura gay




Em 1980, a homossexualidade sumiu do "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais". Em 1990, ela foi retirada da lista de doenças da Organização Mundial da Saúde.


Médicos, psiquiatras e psicólogos não podem oferecer uma cura para uma condição que, em suas disciplinas, não é uma doença, nem um distúrbio, nem um transtorno. Isso foi lembrado por Humberto Verona, presidente do Conselho Federal de Psicologia, numa entrevista à Folha de 29 de junho.


No entanto, o deputado João Campos (PSDB-GO), da bancada evangélica, pede que, por decreto legislativo, os psicólogos sejam autorizados a "curar" os homossexuais que desejem se livrar de sua homossexualidade.


Um pressuposto desse pedido é a ideia de que os psicólogos saberiam como mudar a orientação sexual de alguém (transformá-lo de hétero em homossexual e vice-versa), mas seriam impedidos de exercer essa arte --por razões ideológicas, morais, politicamente corretas etc.


Ora, no estado atual de suas disciplinas, mesmo se eles quisessem, psicólogos e psiquiatras não saberiam modificar a orientação sexual de alguém --tampouco, aliás, eles saberiam modificar a "fantasia sexual" de alguém (ou seja, o cenário, consciente ou inconsciente, com o qual ele alimenta seu desejo).


Claro, ao longo de uma terapia, alguém pode conseguir conviver melhor com seu próprio desejo, mas sem mudar fundamentalmente sua orientação e sua fantasia.


Por via química ou cirúrgica (administração de hormônios ou castração real - todos os horrores já foram tentados), consegue-se diminuir o interesse de alguém na vida sexual em geral, mas não afastá-lo de sua orientação ou de sua fantasia, que permanecem as mesmas, embora impedidas de serem atuadas. A terapia pela palavra (psicodinâmica ou comportamental que seja) tampouco permite mudar radicalmente a orientação ou a fantasia de alguém.


O que acontece, perguntará João Campos, nos casos de homossexualidade com a qual o próprio indivíduo não concorda? Posso ser homossexual e não querer isso para mim: será que ninguém me ajudará?


Sim, é possível curar o sofrimento de quem discorda de sua própria sexualidade (é a dita egodistonia), mas o alívio é no sentido de permitir que o indivíduo aceite sua sexualidade e pare de se condenar e de tentar se reprimir além da conta.


Por exemplo, se eu não concordo com minha homossexualidade (porque ela faz a infelicidade de meus pais, porque sou discriminado por causa dela, porque sou evangélico ou católico), não posso mudar minha orientação para aliviar meu sofrimento, mas posso, isso sim, mudar o ambiente no qual eu vivo e as ideias, conscientes ou inconscientes, que me levam a não admitir minha orientação sexual.


Campos preferiria outro caminho: o terapeuta deveria fortalecer as ideias que, de dentro do paciente, opõem-se à homossexualidade dele. Mas o desejo sexual humano é teimoso: uma psicoterapia que vise reforçar os argumentos (internos ou externos) pelos quais o indivíduo se opõe à sua própria fantasia ou orientação não consegue mudança alguma, mas apenas acirra a contradição da qual o indivíduo sofre. Conclusão, o paciente acaba vivendo na culpa de estar se traindo sempre --traindo quer seja seu desejo, quer seja os princípios em nome dos quais ele queria e não consegue reprimir seu desejo.


Isso vale também e especialmente em casos extremos, em que é absolutamente necessário que o indivíduo controle seu desejo. Se eu fosse terapeuta no Irã, para ajudar meus pacientes homossexuais a evitar a forca, eu não os encorajaria a reprimir seu desejo (que sempre explodiria na hora e do jeito mais perigosos), mas tentaria levá-los, ao contrário, a aceitar seu desejo, primeiro passo para eles conseguirem vivê-lo às escondidas.


O mesmo vale para os indivíduos que são animados por fantasias que a nossa lei reprova e pune. Prometer-lhes uma mudança de fantasia só significa expô-los (e expor a comunidade) a suas recidivas incontroláveis. Levá-los a reconhecer a fantasia da qual eles não têm como se desfazer é o jeito para que eles consigam, eventualmente, controlar seus atos.


Agora, não entendo por que João Campos precisa recorrer à psicologia ou à psiquiatria para prometer sua "cura" da homossexualidade. Ele poderia criar e nomear seus especialistas; que tal "psicopompos"? Ou, então, não é melhor mesmo "exorcistas"?

José Mojica Marins

Esta é a entrevista que faz parte do Jornal Claquete, projeto experimental que meu grupo apresentou na conclusão do curso de Jornalismo do Centro Universitário Barão de Mauá, em 2005. Na ocasião, minha amiga, Amanda Ferreira, esteve em São Paulo, ao lado do diretor para lhe fazer algumas perguntinhas. Este texto discorre suas impressões.

Amanda Ferreira
Enviada especial a São Paulo


     Foi no mínimo, estranho. De repente eu ali no centro de São Paulo procurando o nome de uma rua que ninguém conhecia. Faltando dois minutos para o horário marcado, achei o tal endereço da agência de modelos. Mas, espera aí, eu iria entrevistas o Mojica – Zé do Caixão, como assim, agência de modelos?


    Se alguém se assustou e acha que tem alguma coisa errada, não tem não, é isso mesmo. O mestre do terror brasileiro tem agora uma agência de modelos cuja chamada é mais ou menos assim. “Se você não foi aceito na Elite, na Ford ou na Mega, venha fazer parte da nossa agência, pois aqui, você será aceito”.


   Cheguei ao prédio velho do bairro de Santa Cecília. Entrei e fiquei à espera, pois Mojica não havia chegado ainda. A equipe de filmagem já estava lá. Até então, eu não estava nervosa, talvez um pouco ansiosa, afinal de contas, eu ia entrevistar o Zé do Caixão, e ainda estava no meio do processo de separar o criador da criatura.



   Logo ele chegou e passou por mim sem ao menos olhar. Sua secretária disse: “Ele não deve ter te visto”. Afinal havia outras pessoas por lá e ele nem me conhecia.



   Alguém disse alguma coisa e ele virou-se para mim. Levantei-me e fui cumprimentá-lo. Estiquei a mão, ele me puxou e me deu um abraço. Então, olhei e vi aquelas unhas tanto me aterrorizavam na infância. Elas ainda estavam ali (claro que não as mesmas) bem grandes e pude vê-las bem de perto.



   Todos se arrumaram dentro da sala onde aconteceria a entrevista. Ele quis ver o roteiro de perguntas e também pediu para eu ficar atenta às respostas, pois em uma única resposta ele poderia responder todas as minhas perguntas. Nesse momento comecei a ficar um pouco nervosa. Nesse meio tempo ele já havia fumado uns quatro cigarros.



   Fiquei bem atenta para não perguntar algo que ele já havia respondido. Não pensem que foi uma tarefa fácil, pois a cada pergunta que fazia, ele respondia sobre várias coisas e muito pouco do que eu perguntava.



   Quando as perguntas eram sobre o Lucchetti, ele responde de uma maneira um tanto quando confusa e pouco esclarecedora. Não que ele tenha falado mal do Lucchetti, pelo contrário, falou muito bem, porém pouco, mas sempre muito simpático.



   A entrevista durou mais ou menos 50 minutos, quando disse que havia acabado todas as minhas perguntas ele perguntou se podia deixar uma mensagem e, é claro, eu disse que sim. Então ele pediu que fechassem a câmera nele e começou a dar o seu conselho “Você, você ou todos vocês. Muitas vezes você precisa de um conselho. Mas pense bem antes de ouvir este conselho. Não peça conselho para outro. Porque na maioria das vezes o outro quer ser você! Quando precisar de um conselho, peque um espelho e contemple sua imagem. Ninguém mais do que você gosta de você. Peça um conselho para a sua própria imagem. O seu subconsciente lhe dirá o caminho a seguir. Vá em frente, caia levante, porque cair faz parte. Vá em frente que você chega lá como eu cheguei.”


   Mojica ou Zé do Caixão? Nessa altura, já estava mais confusa para separá-los, dirigiu toda a entrevista, posicionamento de câmera e tudo mais. Realmente ele é um diretor nato, todos com quem falamos durante as nossas pesquisas estavam certos, ele realmente é um gênio com uma câmera.
A entrevista acabou e o homem das unhas grandes me pediu para tirar algumas fotos de toda a equipe para que ele guardasse.


   Também fez uma crítica à cidade de Ribeirão Preto. Ele disse que era a única cidade do mundo onde havia feito trabalhos e que ninguém mandava nada para ele depois. Aliás, essa também é uma crítica do próprio Lucchetti.


   Quando eu estava saindo para ir embora, Mojica (ou será o Zé do Caixão) disse: “Agora, para pagar a entrevista, me pague uma menta no bar aqui ao lado”.



Claquete: Como o senhor conheceu o Lucchetti?

Jose Mojica Marins: Por volta do ano de 1965. Não me lembro o nome. Acho que era Sérgio, um fã meu que me falou dele. Disse que tinha uma pessoa muito legal que ra de Ribeirão Preto e estava mudando para São Paulo, que viu meu trabalho e queria ter um papo comigo. Marcamos em uma casa de chá na avenida São João. Começamos a conversar e ele me disse que foi assistir ao filme “À meia-noite levarei sua alma” como uma gozação, não acreditava que alguém no Brasil poderia partir para um gênero místico de terror. Contou que ao assistir ao filme, ele ficou meio intrigado, mas que, ao dormir, o filme começou a pegar força. Ele me falou algumas coisas que tinha feito. Mexeu com aquilo que eu mais gostava, HQs. Eu era colecionador de HQs, porém, tive que vender para acabar de fazer cinema. Ele, até hoje, tem uma coleção fantástica. Eu estou tentando me recuperar.

Claquete: Como e qual foi a primeira parceria com Lucchetti?

José Mojica Marins: Era uma época que se começava a fazer a fazer muito cinema em três histórias. Eu resolvi fazer “O estranho mundo de Zé do Caixão” em três histórias, e pedi para ele escrever, um dia para cada história”. E não deu outra, o Lucchetti trouxe tudo pronto em dois dias. Então eu vi que ele realmente captava as minhas idéias.

Claquete: Qual foi a influência do Lucchetti na sua vida?

José Mojica Marins: Eu não diria que o Lucchetti mudou nada na minha maneira de ser. Não houve uma grande mudança. Diria que ele me trouxe muito animo, porque ele realmente acreditava no meu trabalho.

Claquete: Quantos trabalhos vocês fizeram juntos?

José Mojica Marins: Eu não queria outro além do Lucchetti. Acho que chegamos a fazer umas treze fitas. Depois, entramos em histórias de fotonovela, HQ, televisão. Acho que o Lucchetti fez uns 150 roteiros ou mais para a televisão, porém nem todos foram aproveitados. Ele foi o homem que mais trabalhou comigo, ficou vários anos como se fosse funcionário. Mas eu não o tinha como funcionário, eu o tinha como amigo. Chegou uma época que a perseguição foi demais, fizemos ainda “Ritual dos Sádicos”, que ficou presa. Se na época essa fita saísse, eu me tornaria o Silvio Santos do cinema nacional. Depois disso, só deu para ele fazer mais um roteiro para mim que foi “Finnis Homminis”, que não tinha nada com o terror.

Claquete: Como o senhor define o Lucchetti?

José Mojica Marins: O Lucchetti não fuma, não bebe, não tem vícios. É muito legal nessas coisas. Só tem o vício de escrever. Escreve, escreve, escreve... Ele é um homem versátil para escrever. Não é um homem de briga. Lucchetti é um homem tímido, aliás tímido demais.

Rubens Lucchetti - Uma Introdução


O texto abaixo é reproduzido de meu primeiro estudo acadêmico, realizado em 2005, no Centro Universitário Barão de Mauá.


Rubens Francisco Lucchetti é o cerne da arte underground e marginal do Brasil. É o cérebro e a organização por trás do cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, nos filmes que roteirizou para o diretor.

Lucchetti já escreveu mais de 1.400 livros, com vários pseudônimos; introduziu o horror no Brasil; editou e publicou centenas de histórias em quadrinhos; e concluiu mais uma porção de roteiros para o cinema nacional, incluindo aí Zé do Caixão. Alguns desses roteiros ainda permanecem inéditos.

Lucchetti e Nico Rosso (ilustrador e desenhista de origem italiana, radicado no Brasil) formaram a dupla que inventou os quadrinhos com fotos sobrepostas nas ilustrações. A primeira vez que isso era feito na História, pelo que se tem em registro. Isso em plenos anos 1960, quando foram publicadas as revistas em quadrinhos do personagem Zé do Caixão. Todas as histórias, idéias e inventos eram feitos por Lucchetti.

Mojica era a arte bruta, o desejo e a paixão por cinema; autêntico e inovador em contraposto ao cinema nacional realizado à época. Odiado e ridicularizado pela nata intelectualizada artística brasileira, que defendia um cinema ‘popular’, mas não feito por um, como Marins. Contradição esta que permeia até hoje os meios artísticos brasileiros. Rubens Lucchetti era seu oposto: a seriedade, coesão e escrita, de quem sabia de onde vinha e o que queria exatamente.

A ligação entre o diretor e o roteirista se deu pela paixão pelo horror. Mojica contava como gostaria que seu filme procedesse (não demorava mais que cinco minutos para ilustrar suas idéias, às quais Lucchetti respondia prontamente e com uma sede quase sobre-humana e com roteiros quase sempre intocados).

A idéia inicial era pesquisar acerca do filme Ritual dos Sádicos e o impacto deste na mídia e população ribeirão-pretana da época, por se tratar do filme mais atual, controverso e inacreditável do diretor; levando-se em conta, ainda, a precariedade do filme e a falta total de apoio do governo. Não foi encontrada nenhuma critica ou qualquer comentário acerca do filme na mídia impressa da época. A segunda investida foi na figura de Lucchetti enquanto um homem que influenciou diretamente o cinema do homem mais conhecido internacionalmente no gênero terror, no caso, José Mojica Marins, o Zé do Caixão.

Pouca gente sabe ou tem noção da importância de Rubens Francisco Lucchetti para o cinema, quadrinhos e horror no Brasil. Esse tema factual e de extrema importância para a cultura (e para todas as pessoas que se interessam por boas histórias) desencadeou o desejo de se trabalhar com o homem e fazer mais e mais pessoas terem acesso a quem, juntamente com José Mojica Marins, deu credibilidade e originalidade ao cinema nacional.

O presente estudo utiliza-se de história oral e de entrevistas realizadas durante todo o ano de 2005 na casa do ilustre personagem; acompanhado sempre pelo fiel companheiro e filho, Marco Aurélio. Todo o material aqui reproduzido – incluindo os anexos presentes ao final do trabalho – são inéditos e até então não tinham sido publicados (com exceção dos trechos referentes aos cineclubes de Ribeirão Preto; presentes em outro estudo de minha autoria). Parte do trabalho é fruto da apresentação de monografia, no mês de dezembro do mesmo ano. Salienta-se que, na ocasião, ainda foram produzidos um documentário de oito minutos e um jornal impresso inédito de doze páginas, intitulado Claquete.





******************************************************************





Tenho que quebrar a cabeça olhando para o papel em branco. Na verdade, eu mais rasgo papel que escrevo histórias, não existe qualquer linha condutiva em meus escritos. Eu não pertenço a esta realidade dos brasileiros, jamais consegui imaginar histórias que tivessem o Brasil como cenário, pelo menos em meus inúmeros trabalhos literários”.

            Nascido em Santa Rita do Passa Quatro (SP), em 1930, o escritor passou sua infância por entre algumas ruas em construção da cidade de São Paulo, época esta em que seus pais realizavam muitas viagens. Após a Segunda Grande Guerra, em 1945, seus pais resolvem se mudar para uma cidade menor, pois as despesas eram muitas e a renda anual da família não era das melhores. A cidade de Ribeirão Preto foi a escolhida, onde Rubens passaria boa parte de sua vida pessoal e profissional.

            Aos treze anos, começou a trabalhar. Teve tantos empregos que chega a perder a conta quando questionado. Almoxarife, gerente de cinema, jornalista, editor e colaborador de revistas estrangeiras de ficção científica e cinema. Sua vida sempre foi muito ligada à leitura, seus interesses pelas histórias em quadrinhos de terror e horror (muito freqüentes nas décadas de 1940 e 1950, por causa de monstros como Frankenstein), surgiram sozinhos. Garante que é oriundo de uma família que não era nem um pouco apegada à literatura: “Meus pais achavam um absurdo um filho deles perder tempo com leituras consideradas infantis e sem escopo”, afirma.

            Seu primeiro contato profissional com o mundo dos quadrinhos se deu aos quinze anos, quando uma trama policial sua (embora considerada pelo próprio um pouco ingênua), foi publicada por um jornal local. Lucchetti relembra revistas muito lidas pelo público infanto-juvenil da época, como a extinta O Lobinho, que ajudaram a pavimentar seu gosto pela leitura. Através de amizades diversas conseguidas por intermédio de suas inúmeras funções culturais na cidade de Ribeirão Preto, o escritor começa a trabalhar em jornais locais, ora escrevendo colunas, ora, novelas divididas em capítulos (hábito em periódicos até a década de 1960).

            Sua paixão pelo cinema também o ajudou a seguir um caminho diferenciado. “Baseado em filmes que eu via desde muito pequeno e em pequenos exemplares aos quais eu tinha acesso pela minha profissão [os gerentes de cinema tinham contato direto com os rolos de exibição], tive a certeza de que trabalharia neste meio, só me faltavam as oportunidades”. Foi por ter esta paixão declarada pela sétima arte que Rubens Lucchetti começou a organizar festivais culturais na cidade de Ribeirão Preto, com a ajuda de amigos como o também artista e multifacetado Bassano Vacarini. Desta fase – início dos anos 1960 – ficou nacionalmente conhecido por ter proporcionado para a cidade um festival de homenagem a Charles Chaplin. “Cheguei a mandar uma carta a ele para lhe contar da homenagem. Fiquei embasbacado quando ele me respondeu, agradecendo esta minha ação”, recorda.



            Em um dia de 1964, em um dos jornais que lia diariamente, Rubens se deparou com a imagem de um cartaz que trazia impressas as palavras “Aguardem! À MEIA-NOITE LEVAREI SUA ALMA!”. Rubens não entendeu de imediato, principalmente depois de descobrir que o cartaz vinha impresso todos os dias da semana. Uma tarde, ao passar em frente a um dos cinemas da cidade, no centro, viu o cartaz do filme e resolveu entrar na sessão para assistir. “Eu simplesmente odiei o filme. Mas depois que vi aquele homem de capa e chapéu pretos na tela, tive a certeza de que um dia trabalharia com aquela pessoa”.

            Nesta época, Rubens conheceu Sérgio Lima, famoso homem da cidade de São Paulo, que funcionava, à época, como um famoso promotor de eventos e celebridades. Foi por causa dele que Mojica tomou conhecimento do roteirista. Em um dia de 1967, Sérgio mandou uma carta a Rubens lhe pedindo uma visita a São Paulo, para que ele entrasse em contato com um amigo. Este amigo era José Mojica Marins, o Zé do Caixão. “O primeiro contato nosso foi péssimo. Mojica me pareceu uma pessoa prepotente e distante, mas mesmo assim me chamou para ir a seu estúdio no dia seguinte e eu fui”, conta ele, que, por sorte, já estava contratado por Mojica, ao adentrar o estúdio que era uma sinagoga. “Ele foi logo me pedindo para escrever três histórias para ele, e eu, em um entusiasmo muito grande, escrevi o que mais tarde serviria de base para o filme O Estranho Mundo do Zé do Caixão (1968)”.

   O trabalho com Mojica era intenso, o ritmo de produção de textos era desumano. Mojica tinha um estúdio e Lucchetti começou a prestar serviços exclusivos para ele. Isso ocorreu entre os anos de 1968, 1969, quando também começaram a trabalhar para redes de televisão – algumas ainda em processo de inauguração. Em 1967, Mojica já tinha um trabalho na televisão, um programa de variedades dirigido por Antônio Seabra e Mário Pomponet. Depois de uma mudança de contrato, o programa (que originalmente era veiculado pela Rede Bandeirantes e passou a ser exclusivo da Rede Tupi, com novos orçamentos e novos cenários) mudou de rede e mudou de direção. Antônio Abujanrra foi o responsável por dirigir este novo programa, que logo, fracassou, pois não conseguiu atingir os antigos índices de audiência da emissora rival. As classes A e B, formadoras de opinião, já haviam migrado para a recém-líder Globo. “A televisão é hipócrita e mesquinha e a culpa pelo programa ter chegado ao fim foi do Mojica, que não soube dar o devido valor àquilo que eu tinha nas mãos”, declara Lucchetti.

            No entanto, apesar da forte amizade e de freqüentar quase que diariamente a casa um do outro, Lucchetti nunca acompanhou as filmagens de seu personagem mais famoso. “Para a idéia do ‘Ritual dos Sádicos’ (1969), que demorou menos de dois minutos para ser concluído, nós tínhamos algumas cenas externas que poderíamos fazer e foi exigido de mim que eu dissecasse o personagem mítico de Zé do Caixão, pois, na época, o personagem estava muito em evidência, em praticamente todos os veículos de comunicação no Brasil todo. A idéia de que usássemos um tema contemporâneo nosso foi surpreendente e resolvi arriscar, escrevendo um roteiro que utilizasse o uso e consumo das drogas como pano de fundo para as loucuras do Zé do Caixão”.

            O filme mais importante da carreira de Mojica é também o mais complexo em termos de financiamento e estética na tela. Lucchetti teve a idéia de filmar de duas maneiras distintas, utilizando cores nos sonhos dos personagens viciados e preto-e-branco na realidade torta dos que habitam a trama toda. “O Mojica filmava em menos de dois meses, e nunca mencionou orçamentos e quantias recolhidas. Toda a idéia do roteiro é minha; a única coisa que partiu dele foi o final – que foi filmado de duas maneiras, quando, embasbacado, o personagem dele olha para as câmeras e diz ‘Corta’. Para mim, isso é coisa de gênio”, conta o roteirista.

            A via-crúcis para que o filme fosse lançado foi complicada. O filme continua inédito em cinemas (e, recentemente, foi lançado em DVD por uma distribuidora independente, ao lado de outras obras do cineasta) e só é conhecido por pequenas rodas de entusiastas e conhecedores da sétima arte. Interditado pela censura em 1969, a cópia original só foi liberada em 1983 (época em que o diretor já estava envolvido com o cinema da Boca do Lixo, em produções de sexo explícito) mas o filme que Lucchetti viu em uma sessão especial no cinema de Ribeirão Preto foi outra. “O exemplar mostrado para mim já não era o mesmo. Modificaram a introdução e trechos que eu me lembro de ter escrito nunca mais foram encontrados. O Mojica não pode ser inteiramente culpado, pois, depois de quinze anos, fica difícil para uma pessoa que mexe com tantos filmes, se lembrar lucidamente de determinadas seqüências”.

            Para Lucchetti, o filme que mais sintetiza sua parceria com Mojica é mesmo o primeiro trabalho registrado da parceria, O Estranho Mundo de Zé do Caixão. “Foi o filme que ele mais seguiu o que estava escrito, registrando em imagens cerca de 70% das minhas idéias. As mudanças ele fazia por conta própria e eu nunca ficava sabendo, pois além de não acompanhar as filmagens com afinco, quando ele ia lá em casa, nossa conversa não era profissional e sim, para jogarmos conversa fora”, conta ele. “Quando eu era funcionário do Mojica, para preencher o meu tempo, tinha que escrever e, então, várias idéias partiram de mim, mas, infelizmente, não há cópias destes trabalhos aqui comigo que eu possa disponibilizar”.

            Para trabalhar no ritmo em que trabalhava, Lucchetti teve que fazer a mudança com toda a família (na época, o escritor já era casado com a já falecida Dona Teresa e tinha um filho pequeno, Marco Aurélio, que sempre acompanhou o trabalho do pai muito de perto) para a cidade de São Paulo. Foi através de trabalhos de terror que conheceu outra figura emblemática do nosso cinema: Ivan Cardoso, com quem chegou a escrever roteiros e até a participar de festivais concorrendo na seleção oficial (como exemplo, podemos citar o Festival do Rio, RioCine de 1986, com o roteiro original do filme As Sete Vampiras).

Na década de 1960, era muito difícil, no Brasil, haver um respeito muito grande com os criadores e escritores de histórias em quadrinhos. Lucchetti, ao lado de seu melhor amigo e parceiro de trabalho, Nico Rosso, realizou uma série de histórias protagonizadas por Mojica e seu personagem, o Zé do Caixão. Nico Rosso já era famoso por seus desenhos na época em que conheceu Lucchetti. Morreu em 1981, poucos meses após uma enchente levar toda sua coleção de desenhos embora, acidente este que destruiu toda biblioteca de sua casa. Lucchetti nunca teve um amigo como Nico Rosso, que, segundo ele, entendia a dinâmica de sua narrativa.

A revista O Estranho Mundo de Zé do Caixão foi um êxito nas prateleiras das bancas. “Na época, não havia nada que se comparasse às nossas histórias. O Nico era um gênio, e eu, além de escrever todas as histórias, ainda arranjava tempo para diagramar e disponibilizar os quadrinhos de forma que a trama parecesse mais interessante. Se parássemos hoje para analisar cada quadrinho produzido por Nico, veríamos que continua sendo uma coisa inovadora, mesmo depois de quarenta anos passados”, afirma.




A Editora Prelúdio atingiu seu ápice de vendas com a revista, que, na época, era vendida por muito dinheiro. A editora começou a atuar em São Paulo na década de 1920, publicando pinturas e pequenos livretos musicais. Seu proprietário foi Arlindo Pinto de Souza, que abandonou o cargo em 1995. Atualmente, a editora possui outro nome, Luzeiro. Fez fama na década de 1960, justamente por publicar as histórias de Zé do Caixão. Enquanto uma revista normal custava em torno de cinquenta centavos, a que eles produziam chegava a custar dois reais (em termos comparativos). Era um custo alto, mas com as histórias, Lucchetti e Mojica conseguiram moldar ainda mais o público de seus filmes e suas maluquices. Porém, assim como todas as investidas de Mojica, a revista passou a ser prioridade de outra editora, a Dokas, fazendo com que a qualidade gráfica do material e a vontade de continuar produzindo material inédito minguassem.

Ao todo, foram dez exemplares produzidos e comercializados, sendo seis pela Editora Prelúdio e quatro pela Dokas. Foi um período de inovação nos quadrinhos brasileiros, muito embora ainda não existam estudos que destrinchem todos estes materiais.

Lucchetti já morou em várias cidades, como o Rio de Janeiro. Mas, após um período de recesso (talvez uma estafa mental), voltou a Ribeirão Preto. Com a família estabelecida e o filho já formado, resolveu novamente se afastar para uma cidade mais pacata e tranqüila. “Não me lembro ao certo o ano em que nos mudamos para Jardinópolis, mas isso foi uma coisa boa. Em Ribeirão, após tantos anos prestando serviços para a cultura local, as pessoas parecem que se esqueceram de mim, embora hoje haja uma sala com meu nome no MIS (Museu da Imagem e do Som) da cidade”, cita, um pouco chateado.

Na cidade de Ribeirão Preto (SP), a primeira pessoa responsável por trazer um cineclube para deleite dos moradores foi Rubens Francisco Lucchetti, já em fins dos anos 50. Ajudado por um primo jornalista (Luciano Lepera) atuante em diversos periódicos da época, Lucchetti criou o Clube de Cinema – porque era também um apaixonado pela Sétima Arte. O autor, oriundo de São Paulo, relata que, apesar de Ribeirão Preto, à época, possuir diversos meios de comunicação em que se propagava cultura, ela ainda era uma cidade “apática”:

Em junho de 1959, o Centro Médico traz para Ribeirão Preto o Paulo Emílio Salles Gomes, para ministrar um curso sobre expressionismo no cinema. Lembro que fui com um amigo meu inseparável, o Moreira Chaves. Como eu sou muito tímido, sentei nas últimas fileiras para ouvir o Paulo Emílio, que tinha muito nome – ele era crítico de cinema do Estado de São Paulo, e toda semana eu o lia. Comecei a amadurecer a minha idéia do Clube de cinema, porque tinha a idéia de que o público teria a oportunidade de ver os filmes que eram impossíveis de serem exibidos no cinema; que se restringiam a passar os filmes contemporâneos. Ele enfatizou a possibilidade de Ribeirão ter um curso de cinema. Veio de encontro com aquilo que eu pensava.

Em parceria com um grupo de entusiastas que queriam algo diferenciado para a cidade, após o curso, realizou-se uma reunião, onde foi fundado o Clube de Cinema de Ribeirão Preto (o autor cita uma dupla de nomes significativos: Dra. Glete de Alcântara, Dr. Carlos Diniz – que viria se tornar o presidente do Clube) – como Entidade Grêmio da Associação de Cultura Brasil - Estados Unidos. Localizado na Rua Barão do Amazonas, quase perto do Cine Centenário (famoso cinema da época), a sede também era responsável pelas projeções. Tais atividades no local funcionaram durante dois meses, segundo Lucchetti. Eram exibidos de oito a dez filmes diferentes, e o responsável pelas projeções também era ele: “Tudo isso eu fazia sozinho. A freqüência era muito baixa, em torno de três a quatro gatos-pingados, o diretor mesmo quase sempre não aparecia. Algumas vezes terminava a sessão sem qualquer alma viva na sala”. Logo, o entusiasta foi percebendo que não era bem a idéia que sempre sustentou, mesmo porque, atuando na área jornalística como crítico, ele aproveitava para fazer promoção do seu Clube de Cinema.

Em agosto de 1959, com pouco mais de um mês de atividades cinematográficas, o crítico Paulo Emílio volta à cidade para fazer a inauguração oficial do Clube de Cinema, com o filme “Guardas e Ladrões”, de Stenio Monicelli. A grande proposta do Clube, era, portanto, divulgar a arte da forma mais pura e ampla. Coisas que as pessoas não teriam condições de apreciar em um cinema comercial,veriam no Clube de Cinema:

Eu comecei a entrar em contato com embaixadas e consulados e eles começaram a me mandar filmes como O Testamento de Orfeu e alguns do Murneau. Eram coisas que nem eu conhecia, era tudo novo para mim. As coisas não eram como são hoje: o que uma pessoa gasta vendo em um mês eu levava dez anos para assistir.

O Clube de Cinema funcionava bem, segundo as palavras de seu fundador. A grande prova disto foi a tentativa de Lucchetti em montar uma semana com os filmes de Charles Chaplin, porque, segundo o próprio, era um desejo que ele nutria desde garoto, uma vez que sempre colecionou fotos, artigos e tudo que saía na imprensa relacionado ao gênio do cinema. Munido de coragem e muita auto-confiança, Rubens então monta um projeto (não profissional da maneira que se conhece hoje, mas algo que veio da intuição): “Não entendia nada de projeto, fazia as coisas por intuição. Só depois que fui descobrir que o sistema de criação que eu usava era o francês – uma descrição literária”.

E o autor é veemente em afirmar que todas as etapas de criação da Semana (que chegou a ter repercussão até mesmo fora do Brasil, já que o próprio “homenageado” soube da tal empreitada, respondendo uma carta endereçada a Rubens) foram de inteira responsabilidade dele. Ele colava cartaz pela cidade afora, corria atrás de tablóides e escrevia textos nos jornais, assim como ia atrás de exibidores e distribuidores para sentirem o projeto em prol do público, sempre muito carente de cultura, tomar forma. Na época, os filmes de arte não ocupavam mais do que uma semana em cartaz nos dois cinemas principais da cidade, o Centenário e o São Luiz. Em comparação, os filmes comerciais, por pior que fossem, por menos tempo que ficassem em exibição, conseguiam uma soma monetária mais satisfatória para os cofres das produtoras. Para o autor, o grande problema era o de que os distribuidores não sabiam trabalhar as promoções que ofereciam ao grande público. Para eles, o que importava era o dinheiro pelo dinheiro. Arte era uma coisa que não se discutia, e, acima de tudo, não dava retorno financeiro (de modo que, quando Rubens conseguiu patrocínio de um distribuidor este sabia estar entrando em mais uma “roubada”).

Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário do que se esperava: houve muito público para as sessões, o que, no dia-a-dia, era incomum. Foram exibidos no decorrer da Semana quatro filmes (Em Busca do Ouro, 1925; Tempos Modernos, 1936; O Grande Ditador, 1940 e O Garoto, 1921), além de haver amostras de músicas, poesias e exposições fotográficas, tudo isso acontecendo no Centro Danti Alligheri em parceria com os dois principais cinemas da cidade. “Um dia, saí para almoçar às 13h30min e a fila em frente ao cinema dava voltas, passava pela prefeitura e virava a Duque de Caxias. Foi um sucesso tremendo”.

Se esta foi uma boa experiência para a vida cultural da cidade de Ribeirão Preto, qual foi o motivo do término do Clube de Cinema? Além da falta de público e do desinteresse geral por parte da população da cidade (que só comparecia mesmo quando havia sessões especiais e temáticas), a própria estrutura não soube se sustentar. Depois de alguns anos tendo sede no Centro Ibero-Americano, perto da casa do próprio fundador, localizada à Rua Sete de Setembro (o que facilitava a locomoção dos projetores, das latas de filmes, dos cartazes), o Clube foi transferido para a Escola de Artes Plásticas, o que complicou a vida de Lucchetti, porque a distância não permitia que houvesse muitas sessões, uma vez que era difícil carregar rolos e mais rolos de filmes:

Era sempre o zelador, Seu Antônio, quem projetava os filmes na Escola de Artes Plásticas. Ele sempre reclamava, porque muitos dos dias, as sessões terminavam sem qualquer alma viva na sala. Chegou um dia que eu não estava fazendo o Clube para alguém, mas para mim mesmo. Era um mundo de sonhos que eu tinha em mãos. Fui um grande mentiroso nesta história toda, porque eu falava que o Clube era uma entidade, mas era uma entidade de um homem só.

Além disso, por uma extrema necessidade de mudança de projetos pessoais na vida do “homem múltiplo”, as sessões passaram a ser quinzenais. Lucchetti então passou a se dedicar mais a alguns projetos experimentais em parceria com pessoas conhecidas da cidade, como Bassano Vacarini e Tony Miyasaka. Nos idos de 1963 até 1965, foram poucas as sessões do Clube, sempre com alguns filmes selecionados. Muitas das vezes, os filmes que eram exibidos eram vistos sem legendas. Para Rubens, o que importava mesmo eram as imagens. Até hoje existem filmes que Lucchetti desconhece o nome, mas tem certeza de que já assistiu a eles. Durante estes dois anos, apenas um homem mostrou interesse e tempo de dedicação ao Clube, além do próprio fundador, mas, infelizmente, o nome do sujeito se perdeu no tempo:

Quando eu fui embora para São Paulo, em julho de 1966, o Clube morreu. Todo o movimento cultural, não só o promovido pelo Clube de Cinema, foi embora junto comigo. Se fosse uma entidade mesmo, como desde o princípio era a proposta, o Clube teria continuado. É ruim falar no nome próprio, mas sou obrigado a falar. Quando de novo, vim para Ribeirão Preto, perguntava para as pessoas sobre os projetos culturais e nada. Ribeirão Preto é uma cidade complicada. Ela é uma cidade de festinha, de barzinhos, de micaretas e de Carnabeirão. De cultura não tem nada.

A tranqüilidade e os merecidos anos de descanso refletem em cada pedacinho de sua casa, simples e acolhedora. A característica já difere das casas “normais”, pois a entrada é pelos fundos, por onde se passa um quintal e se adentra a cozinha. “Tive que lacrar a porta de entrada da minha casa, pois o meu acervo de livros é muito grande, e tomou um bom pedaço da área principal”. A idéia de curtir um merecido descanso é ainda maior quando Lucchetti diz que não gosta de telefone – o utiliza apenas por trabalho – e também não aprecia a internet. “Ainda escrevo todas as minhas histórias em uma máquina antiga, que conservo desde os anos ‘60”.

Em sua biblioteca, hoje, constam mais de quarenta mil livros, dos mais diversificados. Existem outras peculiaridades em sua casa, como, por exemplo, a enorme coleção de relógios que ocupa uma boa parte da sala de estar. É de se estranhar o motivo de tantos modelos. “As pessoas acham esquisito, mas essa quantidade enorme de relógios tem uma explicação. Enquanto morávamos no Rio de Janeiro, minha mulher trabalhava em uma lojinha típica que vendia esses objetos. Quando mudamos de cidade, tivemos que fazer o transporte de todo esse material, pois a lojinha faliu. Como não encontrávamos alguém que se interessasse por eles, os relógios ficaram estocados”, explica.

Atualmente, Rubens continua escrevendo histórias, por encomenda. Sua mulher é recentemente falecida. Roteirizou o filme Um Lobisomem na Amazônia, do diretor Ivan Cardoso, produzido por Diler Trindade (“Roteiro que gosto muito e que foi completamente modificado. Não gostei do resultado final e tenho até vergonha de mostrar uma cópia do filme para as pessoas”) e escreveu uma história que transcorre em Londres e tem como base os crimes de Jack, o Estripador; trama de trinta e duas páginas lançada pela editora Opera Graphica. Seu filho, Marco Aurélio, é encarregado de tomar conta de toda sua obra, além de escrever diversos livros e se envolver constantemente com o núcleo cultural da cidade de Ribeirão Preto (ele organiza, coordena e palestra em cursos de cinema oferecidos pelo Cineclube Canarinho; além de manter, online, uma publicação dedicada à sétima arte, o Jornal do Cinema).

Quanto à sua relação com José Mojica Marins, ele é veemente. “Logicamente, perdemos um pouco o contato, mas até hoje ele me liga, pelo menos uma vez ao mês para dizer e explicar novas idéias para um roteiro. Nossa amizade é ainda muito forte”. Quanto ao futuro, costuma ser mais ponderado. “Para mim, não existe esse negócio de futuro. Pretendo mesmo é continuar morando aqui, fazendo o que gosto de fazer e o que me faz sentir bem, que é escrever e contar histórias".

O Cauim e a História


         O Cineclube Cauim surgiu no ano de 1979. No Brasil, havia 15 anos de repressão política e ideológica em andamento. Segundo seu fundador, a idéia de transformar um espaço em cineclube transcendia a sua paixão por cinema; era algo essencialmente político. Para Fernando Kaxassa, a intenção era juntar aquilo que ele mais gostava – o cinema – com debates de idéias (que, a bem da verdade, era algo considerado “subversivo” à época). O espaço não servia somente como refúgio cultural para aquelas pessoas que “queriam fugir do shopping que acabava de inaugurar em Ribeirão”; seus fundadores tinham a intenção de viver de cinema – e por alguns anos, tentaram até a carreira de produtores.

            Seus fundadores foram responsáveis por participar de momentos importantes da história do Brasil. Além de terem fundado o Cineclube no ano da instituição da Anistia Geral e Irrestrita (possibilitando a primeira abertura política que anos depois desembocaria no nosso atual sistema político democrático), Fernando Caxassa se diz orgulhoso por ter sido “o único cara de Ribeirão Preto a participar da elaboração da Constituição de 1988 desde o fim da Ditadura Militar”.

            O Cineclube Cauim foi criado num momento em que Ribeirão Preto passava por uma mudança em seu centro. Os chamados ‘cinemas de rua’ estavam cedendo espaço aos cinemas de shopping, portanto, uma das maneiras que o Cauim encontrou de se estabelecer foi na maneira como o espaço funcionava como cerne de discussões, através de Mostras e Ciclos. O Cauim pegou um vácuo deixado pelo primeiro cineclube de Ribeirão Preto, surgido em 1962, tendo como coordenador o talentoso roteirista Rubens Francisco Lucchetti. “Uma das Mostras mais famosas organizadas pelo Caxassa veio de uma antiga tentativa de proporcionar uma amostra dos filmes de Charles Chaplin para a população de Ribeirão Preto. Foi algo grandioso: além de filmes, houve exibição de desenhos e até mesmo uma carta respondida a mim, de próprio punho do grande Chaplin”, relembra.

            Em 32 anos de existência, o Cineclube Cauim passou por muitas mudanças (desde seu endereço, até os projetos dos quais faz parte hoje na cidade). Se na época de sua formação a intenção era tornar o cinema mais popular e trazer a população para dentro do cinema, hoje, seus fundadores argumentam que os projetos dos quais faz parte cumprem essa função. “Hoje o Cineclube Cauim não é mais um espaço em que se exibe somente filmes. A nossa função social é ainda mais forte hoje do que no passado, porque temos responsabilidades maiores; a gente cresceu como entidade e como espaço realmente diferenciado. Tudo foi, é e será fruto de muito trabalho e coletividade”, diz Kaxassa.

            As mudanças começaram a acontecer devido às próprias mudanças no país. Como o Cineclube sempre acompanhou a trajetória social do Brasil – além de suas mudanças econômicas, culturais e políticas – isso se tornou uma constante para os membros fundadores. Na crise enfrentada pelo cinema brasileiro em meados dos anos 1990, por exemplo, o Cineclube atravessou momentos críticos. No início dos anos 2000, o Cauim, após alguns anos de portas cerradas, voltou em grande estilo; adotando o espaço de um antigo e respeitado cinema localizado na Rua São Sebastião, onde até hoje continua instalado. Com o novo espaço, vieram novos desafios: projetos educativos (como A Escola vai ao Cinema, responsável por levar mensalmente cerca de 300 alunos das escolas públicas de Ribeirão e região); projetos de cidadania (como o Templo da Cidadania, localizado no Morro do São Bento), entre diversos outros.

            O Cauim hoje se desdobra em muitas atividades paralelas. Na ocasião da comemoração de seus 30 anos, em outubro de 2009, houve uma grande festa com a presença de autoridades locais, autores e atores que têm laços fortes com o cineclube (como é o caso da hoje famosa Débora Duboc, que iniciou sua carreira em Ribeirão Preto e tem um espaço cultural reservado com seu nome, onde funciona o Cineclube Canarinho, uma extensão das exibições do Cauim).       Em alguns discursos, a ênfase nas origens do Cineclube ficou evidente. Muitos dos que falaram apontavam o início de tudo como uma época bonita e muito frutífera, onde os fundadores experimentaram o cineclube de diversas formas.

                                                 ********************************************

         Tendo como marco inaugural a exibição de um curta-metragem intitulado O Trem, em 1895, o cinema como instituição foi inaugurado pelos irmãos Lumière, na França. Foi lá também que o cinema começou a ser enxergado como uma forma de compreensão da realidade, principalmente após a participação deste e de outros países na Primeira Guerra Mundial. O autor Carlos Armando, em seu livro, aponta que a Primeira Guerra teve papel fundamental na divulgação do cinema como arte, porque os filmes representavam a sociedade em seus âmbitos políticos e sociais num período em que pouco se percebia a participação ativa dessas populações destruídas e destituídas.

            Foi neste cenário desolado, ainda na França e depois em países ao redor do mundo, que a palavra cineclube começou a circular entre os meios intelectuais e iniciados. Criação de Louis Delluc, os anos 1920 foram responsáveis por espalhar essa nova prática e perspectiva para os países desenvolvidos. Segundo o autor,

Em 1925 e 1926, o conceito de cineclube começou a se espalhar por outros países europeus, levando para essas entidades que o objetivo essencial delas seria a organização de sessões privadas com filmes de características artísticas. Antes ou depois das sessões havia conferências e debates. E logo o empreendimento tornou-se uma forma pedagógica na formação de cinéfilos, críticos e cineastas. Os cineclubes também começaram a lutar contra a censura, e, sobretudo, a reabilitar obras desprezadas do grande público. [...] (ARMANDO, p.18)

            No Brasil, o primeiro cineclube surgiu em 1927, tendo como um de seus membros fundadores o autor do polêmico e ainda hoje cultuado Limite (1931), Mário Peixoto. O desenvolvimento dos cineclubes foi lento, mas, na França e outros países europeus, tornaram- se além da imprensa outro forte meio de divulgação de cinema nos anos 30. Cabe salientar, localmente, que a época em que os cineclubes estouraram por diversos países também foi a época do grande desenvolvimento econômico e político da cidade de Ribeirão Preto (que só veio ter o seu primeiro cineclube na primeira metade da década de 1960; quando o conceito de cineclube já havia sofrido diversas modificações). Os primeiros cineclubes no Brasil foram inaugurados nas grandes capitais, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

            Nos países europeus, a exibição de filmes como O Encouraçado Potenkin (1925) e O Gabinete do Dr. Caligari (1919) potencializaram o propósito inicial dos cineclubes, como espaços em que se promoviam debates e discussões acerca das qualidades técnicas dos filmes e do impacto social dos mesmos nas populações. Para privilegiar todo este potencial “modificador”, ainda que contestado, o cineclube tem como regra básica, como aponta Armando, a organização dos títulos em uma cinemateca.

Formada da mesma maneira que ‘biblioteca’, a palavra ‘cinemateca’ indica o local onde são conservados, classificados e colocados à disposição do público os filmes que constituem o fundo cultural cinematográfico. [...] Desde 1938 todas as cinematecas nacionais se agruparam em torno de uma organização mundial: a Federação Internacional de Arquivos de Filmes. Nas cinematecas está guardado o patrimônio histórico do cinema mundial. (Idem, pp.19-20)

            Interessante é notar, na linha do tempo e conforme as modificações sociais, políticas, e econômicas de cada país, como os cineclubes tornaram-se parte importante do desenvolvimento artístico e intelectual de forma geral. Intelectualmente, como aponta o autor, era interessante para quem conseguia freqüentar esses locais, esses espaços; era uma forma de ‘status’ que poderia ser alcançado ainda que, a princípio, não existissem fins lucrativos para tal prática. Da mesma forma como o cineclube surgiu como ferramenta de entendimento de uma sociedade fragilizada, ele logo tomou proporções maiores, quando começou a se envolver politicamente nas decisões artísticas e intelectuais desses países e locais. Novamente, o autor constata que

[...] o papel histórico dos cineclubes, depois de 40 anos, dividia-se entre a luta que deveria ser travada em nome da arte contra o comércio e a tomada de posição política para revolucionar os conceitos artísticos. De um lado, os cineclubes pedagógicos, catequizadores; de outro, os que se propunham fazer a cabeça dos cinéfilos. Os que queriam ensinar a arte cinematográfica aos espectadores e os que desejavam ministrar determinadas idéias por intermédio do cinema. (Idem, p.20)
           
            Dentro desta perspectiva, e tendo em vista que o espaço é público e aberto a novos e bem-vindos entendimentos, o estudo do cineclube como fonte histórica traz em sua base a principal função do mesmo, qual seja,

[...] cabe ao cineclube, mediante a projeção de filmes e debates após as sessões para enriquecer a visão dos cinéfilos e motivar os seus interesses, dar as bases de uma cultura cinematográfica que certamente será completada mediante cursos, em que se estudam os gêneros, os grandes cineastas, os mais variados temas que as fitas abordam e a própria história da evolução do cinema. Ajunte-se a isso a linguagem cinematográfica, os elementos de um filme, as etapas de realização, a passagem do roteiro escrito para as imagens filmadas. [...] (Idem, p.24)

Gilberto Abreu

Depoimento concedido pelo vereador Gilberto Abreu (PV) para o meu livro "Viver Cinema: o Cineclube Cauim e seus trinta anos de História".


DEPOIMENTO GILBERTO ABREU – 21 de janeiro de 2012







Me chamo Gilberto Andrade de Abreu, sou natural de Passos, Minas Gerais, nasci no dia 23 de julho de ’49, portanto, tenho 62 anos. A minha infância eu passei em Passos e, em relação ao cinema, eu ia à matinê nos domingos, todos os domingos, e a partir de uma determinada idade eu já acompanhava meus pais nas sessões noturnas. O cinema sempre foi encantador e, nas matinês, eu sempre torci pelo lado errado – sempre torci pelos índios e era massacrado. Então acho que sempre tive esse destino, a partir da minha infância, torcer pros mais fracos. Quanto à TV, é uma invenção muito mais recente. Boa parte da minha juventude não tinha televisão – a TV começou a chegar ao interior do Brasil nos anos ’60, ’70, então, eu ia ao cinema, que é uma das mais revolucionárias invenções da História, originalmente francesa, e que os americanos transformaram em um dos maiores negócios do mundo.
                              
Em Passos não havia cineclubes. O que existia eram cursos e clubes de fotografia; e o que era comum à época era mais as revistas, os gibis (que a gente colecionava e trocava na porta do cinema), mas essa questão mais eletrônica e de imagem em movimento é coisa muito recente; quando eu era jovem não existia. Quando eu mudei pra cá, sim, porque já era outra época, eu tinha quase 30 anos, e a realidade já era outra, inclusive dentro do mundo da tecnologia.

Os fundadores do Cauim e eu chegamos a Ribeirão praticamente ao mesmo tempo, no final da década de ’70. Nós já tínhamos alguma identidade cultural, e nos encontrávamos em teatros e shows. Essa afinidade começou a existir antes de o Cauim ser inaugurado. O cineclube nasceu, na verdade, de uma interação de atividades. Eu dirigia a área cultural do COC e trazia muitas figuras importantes pra cá, inclusive do cinema, e a gente participava de debates e conversas e essa afinidade foi se desenvolvendo. Talvez até já existisse espaços parecidos com o Cauim antes, mas o Fernando, Fernando Caxassa, meu grande amigo, sempre entusiasmado pelo cinema, a partir desses encontros (que, algumas vezes, filmava ou nos reuníamos depois para debater, geralmente em mesas de bar) foi se avolumando. A idéia de produzir coisas e aglutinar pessoas em torno do cinema e da fotografia, assim como da literatura, foi crescendo.

Dificuldade existia e existe até hoje. A sobrevivência do cineclube ainda é um parto real até hoje. Na época era mais difícil ainda. Mas o entusiasmo das pessoas quererem fazer as coisas ajudou. Fazia palestra, debate; nós estávamos sempre em grupo. Fomos criando um núcleo cultural – ainda existia a repressão da Ditadura, o que servia para que nos uníssemos cada vez mais. Eu vim de uma cidade extremamente conservadora, que é Passos, e me chocou um pouco porque aqui eu vi uma sociedade menos conservadora, mas ainda conservadora. Nosso grupo de amigos, professores, fotógrafos e artistas, nas reuniões, foi criando espaços na cidade, o que, mais tarde, se revelou uma aventura muito grande. Havia repressão, mas nós nunca nos incomodamos com ela e fomos abrindo os espaços. Abrir espaços é como abrir cabeças: havia debates no COC, no Colégio Auxiliadora, na UNAERP; onde havia debate e discussão nós estávamos presentes e isso foi criando um espaço cultural alternativo.

O Cineclube Cauim funcionava na Rua Lafaiete, entre a Álvares Cabral e a Tibiriçá – onde havia um cinema – e as pessoas começaram a se aglutinar, num movimento que foi crescendo e fazíamos temporadas de grandes nomes do cinema (Semana Ingrid Bergman, Pasolinni, etc) e os amantes foram se aproximando e criando uma cultura local muito grande. Não existia apoio, era tudo na cara e na coragem. Era uma empresa que pagava um convidado, outra que pagava o artista; era uma escola que pagava os palestrantes, era tudo no improviso e com a participação de amigos nossos, da área empresarial que sempre foram contribuindo e colaborando e a coisa foi crescendo e se instituindo. Tudo que se institucionaliza morre, mas o Cauim é o maior exemplo de que não: o Cauim criou uma subcultura em Ribeirão Preto – de contestação, de presença, de politização, de amizade. Esta subcultura progrediu e criou outros núcleos e eu jogo a responsabilidade disso ao Cauim. Outros grupos, como o Ribeirão em Cena, do Gilson Filho, surgiram da experiência do Cauim: é possível fazer cultura, mas nunca é fácil, porque as empresas e o poder público, sobretudo, não investem, e pelo mínimo que se consegue é possível fazer coisas muito boas, como foram feitas.

Fernando Caxassa, o Mel, o Geraldo Noel, o Edvaldo Arantes... Depois vieram outros que se agregaram. Existe um grande número de pessoas e seria injusto eu esquecer qualquer nome – inclusive dos que nem aqui residem mais. Alguns morreram, como o Canarinho e o Sócrates (que se agregou depois, por conta das suas afinidades culturais com o Cauim desde o princípio, e não pelo futebol, como é comum as pessoas confundirem). Fundamentalmente, o Cauim existe por um nome só e este nome é Fernando Caxassa.

Digamos que de freqüência regular, não mais, por causa das minhas outras atividades. Volta e meia o Fernando me liga por conta de algum evento, ou de cinema, ou de encontro de amigos, essa cultura que o Cauim gerou é que é importante e que levou a projetos como o Templo da Cidadania, os projetos sociais do Cauim e isso é interessantíssimo. Regularmente o Fernando me liga e estamos sempre irmanados e a luta continua. As coisas hoje são mais fluidas, nós sabemos mais claramente tudo o que precisa ser feito. E, mais claramente, a gente sabe que está sozinho. Tudo começou muito modestamente e o Cauim se transformou no maior cineclube do mundo – esse passo foi maior que a perna – não só em termos de durabilidade, mas em termos de tamanhos físicos. Qual cineclube hoje mantém um cinema de mil lugares?

Agora, eu acho que, por falta de apoio, o Cauim não faz mais do que fez, que é ministrar cursos de cinema. Dar iniciação ao cinema, que é a função primordial de qualquer cineclube – não só ser um centro de debates sobre o cinema, mas o ensino de cinema, da técnica cinematográfica. O Cauim hoje precisa recuperar sua origem. Este ano tem uma emenda (embora de valor pequeno) para o Cauim. O grupo Ribeirão em Cena, por exemplo... Se não fosse pela verba que destinei enquanto vereador nos últimos três anos, já teria fechado. O que a gente pode fazer nesse sentido, a gente faz. Acabamos de editar uma coletânea de 13 livros. O que eu posso fazer enquanto da destinação de verbas para a cultura, eu faço, só que todo poder é limitado. Precisava haver maior envolvimento da iniciativa privada, que é assim que se viabilizam os projetos. Desde que os projetos sejam qualificados, que o façam, mas é difícil. Não é fácil propor e ter a concordância de empresários para projetos de cultura qualificada. De cultura maciça é fácil, pois o retorno é imediato.

O Cauim formou pessoas de maneira informal. Formou informalmente. Muita gente se tornou profissional por freqüentar o Cauim e os projetos que o Banco Ribeirão Preto tem patrocinado ao Cauim vem permitindo uma ação social importantíssima e eu acho que é um trabalho importante, mas o foco do Cauim mesmo é a questão cultural. A gastronomia é um elemento. O que eu cobro do Fernando é que o Cauim se volte para o cinema: formar cineastas, atores, produtores... Existem atividades e instituições afins. Deve haver um direcionamento da alta cultura – não desprezando a cultura popular – porque a alta cultura é cultura de qualidade e não de elite. A soma de esforços é que poderá criar um movimento cultural maior em Ribeirão Preto.

O Estado, no Brasil, é muito importante para subsidiar atividades. Mas o Cauim é um exemplo de que, independente do Estado, ou com a colaboração do Estado, você pode durar décadas e criar projetos interessantes. Eu acho que o Cauim, agora, tem que tomar um rumo de independência, de geração de renda, coisa que ele ainda não conseguiu. Não adianta ficar também à mercê da graça de governantes para que eles banquem projetos. A cultura de Ribeirão Preto nos últimos trinta anos está ou ligada, ou na órbita do Cauim. Quem não tem independência econômica, não tem independência ideológica. O Cauim sempre teve ideologia e precisa criar condições de sustento para mantê-la. Novas atitudes, novas propostas, não ficar à mercê do Estado, por exemplo, são ações cabíveis de serem feitas. Aqui em Ribeirão Preto ainda existe o coronelismo e o clientelismo, o favoritismo. O Cauim tem que manter a autonomia que sempre teve e permanecer, ou pelo menos, tentar ficar longe dos políticos.

Todos os meus livros e enquanto eu puder (e qualquer editora permitir), a Editora Cauim ou a chancela Cauim estará em todos os meus livros. É uma marca da minha vida, da vida do Fernando e eu carrego não só como uma homenagem. O Cauim é um estado de espírito, e divulgar este estado de espírito faz parte da cultura do Cauim. Eu ponho o Cauim nos meus livros como homenagem: ao grupo de amigos excepcional que criou um movimento extraordinário em Ribeirão Preto e inspirou dezenas de outros. Eu acho que é uma relação dialética e recíproca. Eu contribuo com o Cauim e o Cauim contribui comigo pela relevância que eu acho que é o projeto.

Gilson Filho


Eis o depoimento de Gilson Filho, mantenedor do espaço Santa Rosa e do grupo Ribeirão em Cena. O depoimento está presente em meu livro "Viver Cinema: o Cineclube Cauim e seus trinta anos de História" que foi lançado oficialmente na 12° edição da Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, no último dia 29 de maio.



DEPOIMENTO GILSON FILHO – 06 de fevereiro de 2012







Eu tenho um pouco de dificuldade com datas. 30 anos atrás, quando conheci o Cauim, eu era repórter da EPTV, que, na época, era TV Ribeirão. Eu vim para Ribeirão Preto para trabalhar no Diário de Notícias; eu vim de São Paulo, naquela época, para trabalhar no Teatro Ribeirão-Pretano da Universidade de São Paulo – TRUSP – que era dirigido pelo Ivanir Pessoti. Fui convidado para fazer um trabalho como ator e acabei ficando na cidade, porque, além de tudo, eu era jornalista e já trabalhava. Sou natural de Espírito Santo dos Pinhais. Eu acredito que o Cauim estava em seu início; fui trabalhar no Diário de Notícias e depois fui para a EPTV, depois de um ano de fundada. Eu já conhecia o Cauim pelas pessoas que dele faziam parte: o Paulo Camargo, o Kaxassa, o Tupi, o Fernando, o Canário... E eu comecei a me aproximar deles primeiro como repórter. Na época o cinema ficava na Rua Lafaiete, 374, e eu era pautado pelas matérias de Cultura. Uma relação muito forte de amizade, de acreditar no projeto que eles apresentavam à época. Só que isso durou pouco tempo, porque depois de três anos vendo-os direto e trabalhando voluntariamente na divulgação das atividades deles, eu fui transferido para Campinas. Sempre os acompanhei de longe. Entre idas e vindas, o meu vinculo maior com o Cauim vem de 11 anos atrás, quando eu voltei para Ribeirão Preto pra trabalhar na Rede Família de Televisão, que tinha uma sede local dirigida pelo Rubem Volpi, jornalista, e lá eu criei junto dele um programa jornalístico e aconteceu um fato extraordinário à época, que me fez querer abandonar minha carreira de jornalista e me dedicar única e exclusivamente ao Ribeirão em Cena. Pra entender isso, eu preciso contar uma historinha...

Eu trabalhava como repórter; fazia um programa jornalístico completamente irresponsável, criado pelo Volpi, em que a gente imitava o Ratinho. Na época, Ribeirão Preto enfrentava um momento de extrema violência. Há 11 anos, ocorreram 74 homicídios no intervalo de um ano, envolvendo jovens entre 16 e 22 anos, em sua maioria. Era uma guerra de gangues, dividindo dois bairros e havia homicídios em massa. Existia o jornal do Wilson Toni, o Verdade, que chegou a noticiar os homicídios por número. Eu era repórter policial. Um dia, no período da tarde, eu fui cobrir um acontecimento na Avenida Brasil e chegamos lá, o garoto nos chamou – tinham assassinado um motorista de caminhão – e perguntou quem era o repórter responsável pelo jornal. “Ponha na capa do jornal que fui eu que matei”, ele disse. Nessa hora, a gente percebeu que o jornalismo que estávamos fazendo era um que gerava mais violência. Voltei à redação às três horas da tarde – me lembro como se fosse hoje – e pedi demissão. Saí em busca de parceiros para criar projetos de inclusão sócio-cultural. Fui bater na porta do Cauim. Inicialmente, fomos para a Favela Jandaia, depois, para uma loja do Ipiranga. Na favela, os traficantes nos expulsaram; a loja era pequena demais. Daí, cheguei ao Cauim e naquele momento eles estavam criando o Templo da Cidadania. O Ribeirão em Cena, na verdade, veio ganhar o nome depois. Ele nasceu como Cooperativa de Teatro Cauim e permaneceu assim durante três anos. Havia uma gestão conjunta; construímos o primeiro espetáculo, que se chamava O Óbvio Ululante (uma adaptação de ‘Perdoa-me por me traíres’, do Nelson Rodrigues) e naquele momento o Templo foi ficando pequeno. Depois o Kaxassa me disse que havia um espaço na Rua Lafaiete e corremos atrás de alugar o espaço.

Fomos até o prefeito, que na época era o Palocci, e, coincidentemente, naquele dia, ele recebia o Maurílio Biagi. Quando chegamos lá, o prefeito nos apresentou dizendo que tínhamos projeto que talvez interessasse ao empresário. De lá, nós viemos para cá, identificamos o proprietário do prédio que estava abandonado e o Maurílio foi lá e alugou o espaço. O Ribeirão em Cena é filho legitimo do Cauim. Nasceu de um fato, um problema social, que logo foi abraçado pelo Fernando Kaxassa e pela diretoria do Cauim na época.

O teatro vem antes do jornalismo. Eu saí da minha cidade para estudar no teatro de São Paulo, na Escola de Artes Dramáticas, que na época não era da USP, era do Dr. Alfredo Mesquita; como se fosse uma entidade não-governamental, e eu prestei vestibular e entrei. Era um curso técnico, equivalente ao segundo grau. Eu precisava fazer uma universidade e já estava com meus pezinhos dentro do Jornalismo. Eu cheguei a São Paulo em 1968, o ano da Repressão, o ano do Teatro Brasileiro, o ano do Movimento Estudantil. O primeiro lugar que conheci ao chegar a São Paulo com 17 anos foi o Teatro de Arena. Fui para o Teatro Anchieta também; onde fui trabalhar. Todo o movimento teatral girava em torno da Praça Roosevelt, que era onde existia tudo. Ali, eu devo a minha formação política – que é mais importante que a minha formação artística –; sempre fui filiado a partidos de esquerda; sou comunista e a minha formação artística vem de todo esse momento da história nacional.

Exatamente foi essa perspectiva que me fez ficar próximo ao Cauim; mesmo porque um dos primeiros eventos que o Cauim realizou e se tornou inesquecível foi quando ele conseguiu trazer para Ribeirão, por um período de dois ou três dias, o Luis Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Nós tivemos esse contato direto com ele, o maior sonho da minha vida era conhecê-lo e, depois de muitos anos, eu ainda tive a sorte de receber um prêmio Herzog das mãos dele. O Cauim é a ligação do artístico visceralmente ao político.

No Brasil, trabalhar nesta área artística, cultural, é muito difícil. Não é só com o Cauim ou com o Ribeirão em Cena. Muitas das dificuldades que temos até hoje são resolvidas pelo Cauim, porque somos ligados até hoje. Nós fazemos parte da ‘roading’ Cauim, porque ele é um coletivo.

O Ribeirão em Cena tem um fator que o diferencia um pouco do Cauim. É um privilégio, porque conseguimos aprovar na Câmara Municipal um convênio sem época para terminar. O Cauim é um cineclube e o Ribeirão em Cena é uma escola de teatro. A vocação do Ribeirão em Cena é oferecer oportunidades para os artistas locais – a formação de Artes Cênicas para a pessoa que não tem condições de pagar uma escola. Está no processo de ser reconhecida pelo MEC... Por esse convênio, a prefeitura paga o salário dos nossos professores, e o resto, a gente se vira. Não dá para fazer um comparativo de dificuldades; a nossa dificuldade é que nós só temos os salários dos professores. Nós somos uma ONG, e o que é uma ONG senão uma entidade do terceiro setor que cumpre de graça as obrigações que o governo tem que cumprir e não cumpre, ganhando pra isso? A gente faz de graça o que o governo ganha pra fazer e não faz. O terceiro setor substitui o Estado nas suas obrigações legais. Quem deveria dar cinema de graça? O governo. Quem teria que dar a oportunidade para cem jovens neste setor do qual faço parte? O governo. A gente apanha porque o governo não nos oferece os recursos necessários. Então, a prefeitura oferece para nós os salários dos professores. Temos as outras coisas, como papel, apostilas, telefones, aluguel, consertos de máquinas quebradas, manutenção de toda espécie, água, funcionários... Quando nós fechamos a porta do Ribeirão em Cena, hoje, nós gastamos, por dia, 300 reais. Tudo isso tem custo.

Aqui funciona de segunda a segunda, das 8 às 22 da noite. A nossa dificuldade são várias. Não é nem do ponto de vista institucional, político, mas mais a elite empresarial de Ribeirão Preto, que tem uma visão muito conservadora; uma visão capitalista selvagem. Todas as ONGs poderiam oferecer e divulgar melhor seus serviços se os empresários optassem pelas leis de incentivo fiscal que o governo tem. Existe a Lei Rouanet, que desconta uma parte do imposto de renda. O governo federal fez a parte dele; o governo estadual criou o PROAC – só que os empresários não têm o menor interesse nisso. Eles preferem continuar levantando os muros de suas casas, colocando cerca elétrica, do que chamar os contadores para investir. 54 milhões pagaram de ICMS no final do ano e não ficou nem 0% para Ribeirão Preto. Os contadores não têm um mínimo de responsabilidade social. O contador não faz essas coisas, porque diz que dá muito trabalho gerar um boleto na internet – eu ouvi isso! A Darcy Vera, no começo do governo dela (pergunta isso ao Kaxassa), nos chamou e falou: ‘Vamos fazer um café da manhã, vamos chamar o Sindicato dos Contabilistas; chama o Golfeto da ACI, o Maurílio Biagi, o Nelson Rocha Augusto. Eles vêm e dão uma palestra para os contadores para que eles percebam as vantagens – eles investem em marketing cultural, o que significaria que o dinheiro retornaria pra eles’. A resposta foi ‘Não faça, porque não nos interessa. Os contadores já têm muita dor de cabeça’.

O que nós oferecemos aqui? Em dez anos nós já formamos mais de 2500 jovens, gratuitamente. Em que outro lugar eles teriam oportunidades como essas? Na praça da esquina, agora, existe um monte de jovens fumando maconha. Não estou dizendo que os nossos jovens são marginais ou que eles fumam maconha; quando nós abrimos as vagas no começo de cada ano para preencher cem vagas, geralmente aparecem trezentos, por aí. São 40 horas semanais de aula, com sete disciplinas. Hoje nós temos sete professores. A prefeitura só paga quatro deles. O restante, os professores tiram parte de seus salários para pagar os demais. O professor de Teoria Musical e o de Canto; mais os de dança de rua... Se tivéssemos essa lei Rouanet e as pessoas depositassem, eu poderia atender aqui 400 jovens por mês. Outro projeto que fizemos juntos, o do Espaço Cênico Débora Duboc e o Circuito Canarinho – fechou. Nós não tínhamos dinheiro pra pagar o aluguel. O cara ta derrubando o prédio pra virar estacionamento. A gente atendia cem alunos para o Curso de Iniciação; mais nove núcleos (e cada núcleo com 20 pessoas). Hoje, nós só temos um espaço. Como fazemos?

Nos últimos dez anos em que estou empenhado no projeto do Ribeirão em Cena, eu vi Ribeirão Preto crescer muito. Quando abrimos o projeto, o Ribeirão em Cena funcionava numa favela e o Cauim sequer tinha uma sala de cinema. 90% dos grupos que estão atuando na cidade, hoje, saíram daqui. Nós formamos um público que representa 43,8% dos que vão ao teatro na cidade. O Cauim, hoje, tem um dos maiores cinemas do Brasil, com um dos maiores projetos do Brasil. O movimento teatral em Ribeirão Preto cresceu muito; os grupos que saíram daqui estão trabalhando. São dezenas de grupos. Muitos são profissionais que foram cursar as maiores faculdades do país e estão voltando para dar aulas, por exemplo.

O pior ano para o Ribeirão em Cena foi o de 2011, foi o ano que ele mais encolheu: nós perdemos o Espaço Débora Duboc; não conseguimos contratar novos professores; tomamos um toco do Ministério da Cultura; estamos processando a D. Ana de Holanda no MPF. Nós perdemos o espaço em decorrência da irresponsabilidade da Ministra da Cultura. Em 2009, representantes do Ministério vieram para cá e nos encheram a bola em participar de um concurso. O projeto foi aprovado com o prêmio de 50 mil reais, para que montássemos seis espetáculos. Recebemos metade desse valor para que realizássemos o que seria a Nona Mostra de Teatro do Ribeirão em Cena. Começamos a gastar um dinheiro que a gente não tinha, porque o projeto saiu no Diário Oficial, e queríamos fazer algo maior. Cheques pré-datados, boletos bancários e dinheiro do nosso próprio bolso. Quando foi no Natal de 2010, o Diário Oficial publicou que 96 ONGs que participaram deste projeto não poderiam receber os prêmios, pois não tinham entregue as documentações conforme especificado no edital. A política do Juca Ferreira, que contemplava as ONGs, morreu. A Ana de Holanda mudou tudo, acusou o prêmio de ser não-artístico; porque artistas são os atores da Globo. Essa é a visão que essa filha da puta tem. Ela quis participar da Feira do Livro e nós fizemos a manifestação para que não viesse. Daí ela revogou o prêmio, o que não prejudicou somente a nós, mas a todos. Ela e outro rapaz de Ribeirão Preto, ligado a ela, o Galeno Amorim, que deixaram toda essa palhaçada acontecer. ONG não pode ter nome sujo. A meninada vendeu pizza, fez rifa, fez shows, tudo pra conseguir pagar essas despesas. O IPTU também estourou; a gente teve que renegociar o valor; da noite pro dia tivemos que desembolsar cinco mil reais para a Secretaria da Fazenda, e parcelamos a dívida em 24 vezes, o que significa que ficarei um bom tempo pagando o espaço que nós não temos mais. Aí é que mora o equilíbrio: nós nunca produzimos tanto como no ano passado. Foram três peças que estrearam; quatro que voltaram a cartaz; promovemos um festival de cenas curtas; um curso de dramaturgia; trouxemos da Dinamarca o Eugênio Barba e a Julia Valle, que deram uma oficina de três dias aos alunos, fomos indicados ao Festival de Curitiba... Fomos pra França, no começo do ano, para a Universidade de Sorbonne... Alunos que sequer tinham saído de Cravinhos pisaram na França pela primeira vez! E, no entanto, foi o ano que a gente mais se fudeu.

Hoje eu abro pra quem quiser a minha conta corrente e a do Ribeirão em Cena. Não temos um tostão, um puto. Nós sobrevivemos de quatro empresas: Coca-Cola, Independence Veículos, Doces Santa Helena e Maurílio Biagi. A família Biagi é fundamental. São as pessoas que tem consciência e dividem esses valores entre as várias vertentes artísticas que existem na cidade. Em Ribeirão Preto hoje não passam de dez empresas aquelas que conseguem investir através da Lei Rouanet. Campinas investiu um bilhão de reais no ano passado, e Ribeirão Preto nem um milhão. Essas pessoas que acham que a cidade é a capital da cultura só consideram cultura aquilo que é divulgado pelo Teatro Pedro II. Nós temos um público fidelíssimo aqui. Nós sobrevivemos aqui por causa do Gilberto Abreu. Independente de ser vereador é um cara que está presente em nosso dia-a-dia: faz seminários, palestras... O ano passado o Gilberto fez uma emenda de 50 mil reais, dividida em doze prestações de 4600 reais para que paguemos o aluguel. O fundamental não é essa questão capitalista. O fundamental é a presença intelectual do Gilberto Abreu, por isso não tenho como esquecer ele. Um dia eu ainda escrevo um livro com todas as estórias do Gilberto, que me contaram e que eu vi: passeatas com estudantes... Quando eu o encontro, eu o chamo de Salvador Abreu. Se não fossem essas emendas, nós não estaríamos em pé.

Uma coisa que me incomoda muito é eu deixar o meu lado artístico para viver todo este lado de gestão; que é uma coisa que eu não sei fazer. Eu ainda não encontrei um Santo Odônio, como o Kaxassa. Ele mexe com cinema e eu, com teatro e com jornalismo; não sabemos fazer planilhas. Olhando pra trás, o que nós fizemos, o que o Fernando fez, porque sou um discípulo dele, é uma obra extraordinária, e por isso, não é reconhecida. Se o Kaxassa tivesse feito ‘ai, se eu te pego’ ele estaria famoso. É uma obra extraordinária que incomoda. Tudo tem que ser tirado à fórceps. Essas forças da elite empresarial, que não têm a menor responsabilidade social, são forças que estão aí. Hoje essa elite é muito pior, porque é subliminar, ela é muito mais maquiavélica; maçônica. Não pensar, consumir. É uma farsa a gente pensar que vamos sair desse buraco, nós vamos estar sempre comendo merda aqui. Vendendo carro; deixando de pagar aluguel de casa para pagar aluguel de teatro, e por aí vai. A nossa briga é contra um dragão muito forte e invisível. Eu tenho a minha missão: ela está ligada a uma posição política que eu assumi quando tinha meus 16 anos. Eu sou comunista. Já passei por vários partidos e pedi demissão de todos. A minha participação no Ribeirão em Cena é extremamente política e ideológica; é oferecer oportunidades para a moçada e abrir as cabeças deles. Ser ator exige força de vontade. Todo ator é politizado. Tratamos do cotidiano das pessoas; não tem como ser diferente.

Eu não trabalho em palco tem uns bons 15 anos. Profissionalmente eu trabalhei em grandes Companhias de teatro, fiz ‘Um Bonde Chamado Desejo’; trabalhei com o Nuno Leal Maia; o Toni Ramos; o Marcos Plonka... Fui profissional em São Paulo por uns dez anos; depois a minha filha nasceu e eu precisei sair de São Paulo pelos problemas de saúde dela; fui pra Campinas e virei diretor. Hoje, quando muito, dirijo uma peça por ano. Hoje sou mais administrativo e produtor em decorrência dessas dificuldades que a gente atravessa. No momento em que você chegou pra entrevista, eu estava estudando uma porra chamada Economia Solidária para que não corramos o risco de fechar. Imagine só, eu, um cara ligado ao cultural, tendo que me virar com termos de economia. Tenho que ficar o dia todo aqui, buscando solução, me humilhando, pedindo esmola. Vou levar 27 pessoas para Curitiba agora, preciso de, no mínimo, 20 mil reais. É ajuda de custo pra moçada; eu tenho que arrumar isso agora. É essa merda. A gente poderia estar aqui, estudando texto e tudo, mas a gente faz planilha de custo. Já pensei em parar várias vezes; inclusive nesse momento. Eu não acho que esteja com saúde pra segurar essa peteca; tem dois anos que não consigo tirar férias... Estou com 61 anos. Temos um projeto importante, reconhecido internacionalmente, e, no entanto, temos que vender rifa de camisa de jogador de futebol. Não é uma merda?